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Por Paulo Batistella — Ponte Jornalismo
A gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) turbinou um bônus pago a policiais militares pelo cumprimento de metas e tem privilegiado a corporação tanto no volume de dinheiro gasto quanto na rapidez em remunerar os PMs, se comparado a trabalhadores públicos de outras pastas do governo de São Paulo e da própria Secretaria da Segurança Pública (SSP) também recompensados por resultados.
O governador já distribuiu ao funcionalismo ao longo do mandato R$ 2,71 bilhões a título de “bonificação por resultados”. Os policiais militares ficaram com 30,5% disso (o equivalente a R$ 827 milhões) — embora o quadro da Polícia Militar paulista (PM-SP) represente hoje 15,8% dos servidores do Estado (cerca de 82 mil de um total de 519 mil).
Em um cenário hipotético no qual o governador tivesse repartido os gastos com bonificação de modo equivalente à representatividade de cada órgão, a PM-SP teria recebido R$ 399 milhões a menos. Já os servidores da Saúde, por exemplo — com 45 mil trabalhadores (ou seja, 8,7% do funcionalismo) —, teriam tido direito a R$ 235 milhões a mais. A pasta ficou com apenas 0,08% do que Tarcísio distribuiu com o bônus (R$ 2,1 milhões).
O panorama foi identificado pela Ponte ao cruzar dados orçamentários divulgados pelo próprio governo no Portal da Transparência, com números de 2022 para cá, e publicações do Diário Oficial do Estado de São Paulo (DOE-SP).
A Ponte também identificou que o governo Tarcísio tem pago as bonificações com base em metas que foram definidas só depois de passado o período no qual teriam de ser cumpridas. A bonificação tem tido transparência frágil, já que não é divulgado quem a recebeu ou quanto foi pago a cada um. Além disso, a reportagem apurou que o bônus dado aos policiais ignora, entre os critérios exigidos para a recompensa, o combate a crimes como tráfico de drogas, estupro, estelionato, sequestro, desaparecimento forçado, lesão corporal seguida de morte e posse ilegal de arma de fogo, entre outros.
Especialistas e servidores ouvidos pela Ponte afirmam ver robustos indícios de que o bônus tem sido usado não como um incentivo por méritos e para a eficiência da máquina pública, mas de modo arbitrário e político — ou seja, como um agrado a uma das bases políticas do governador no estado e também como um aceno ao eleitorado que preza pela militarização da segurança pública.
Tarcísio de Freitas (Republicanos) na cerimônia de 132 anos das Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (ROTA), em 1º/12/2023 (Foto: Francisco Cepeda/Governo de São Paulo)
Pastas numerosas recebem bem menos
Em números absolutos, até esta terça-feira (10/6), somente uma secretaria teve ganhos maiores do que a PM no mandato de Tarcísio, a da Educação, com R$ 1,45 bilhão (53,6% do total). No entanto, ela tem mais do que o triplo de servidores da Polícia Militar: cerca de 247 mil, o equivalente a 47,6% do funcionalismo no estado. Além disso, cerca de R$ 192 milhões desse montante foram pagos em 2023 como restos do que o governo anterior, de Rodrigo Garcia (PSDB), já havia empenhado (ou seja, comprometido no orçamento). Se considerar apenas o volume que Tarcísio empenhou para bonificações, os profissionais da rede de ensino têm 44,1% até aqui (R$ 1,26 bilhão).
Outras importantes secretarias em números de servidores tiveram ganhos muito abaixo do que representam no funcionalismo. A pasta de Ciência, Tecnologia e Inovação agrega 4,5% dos servidores estaduais (23 mil), mas ficou com apenas 0,003% (R$ 87 mil) do bônus já pago por Tarcísio.
A pasta de Administração Penitenciária (SAP), com 39 mil servidores, também ficou para trás: recebeu R$ 182 milhões (6,6% do total), embora represente 7,6% do quadro funcional. Já os policiais civis e técnico-científicos, vinculados à SSP assim como a Polícia Militar, receberam 6,2% do que Tarcísio pagou (o equivalente a R$ 170 milhões) — eles somam 28 mil pessoas, ou seja, 5,5% do funcionalismo estadual.
Se desconsiderado o ano de 2025, em que o empenho e o pagamento de valores ainda estão em andamento, o privilégio da PM-SP fica evidente do mesmo modo: nos dois primeiros anos de governo, Tarcísio gastou R$ 1,62 bilhão com a bonificação por resultados, montante do qual os policiais militares ficaram com 27% (equivalente a R$ 441 milhões). Caso a distribuição fosse equivalente ao peso da Polícia Militar no funcionalismo, ela teria recebido R$ 184 milhões a menos.
Somente neste ano, até o fim de maio, o governador paulista empenhou R$ 355 milhões para pagar bonificação aos policiais militares. É quase sete vezes o valor já separado também em 2025 para remunerar as metas de todas as outras 24 secretarias de Estado juntas (R$ 51 milhões), com 409 mil servidores. Tarcísio não apenas empenhou um valor maior, mas já efetivamente pagou R$ 386 milhões a título de bonificação aos policiais nesses cinco primeiros meses do ano.
Em 2022, ainda sob gestão Rodrigo Garcia, o valor empenhado para o bônus aos PMs havia sido de R$ 113 milhões. Em 2023, primeiro ano de Tarcísio, pulou para R$ 161 milhões. Já no ano passado, foi ampliado para R$ 301 milhões — ou seja, uma disparada de 165% em relação ao ano que precedeu seu mandato.
Policiais têm modelo próprio de bonificação
O valor distribuído pelo governador aos integrantes da SSP, o que inclui a Polícia Militar, uma autarquia vinculada à pasta, corresponde a um bônus criado pelo governo paulista em 2014 (com a lei complementar 1.245), ainda sob gestão do então governador e atual vice-presidente Geraldo Alckmin (ex-PSDB e atual PSB). À época, o benefício surgiu apenas para contemplar a SSP.
Servidores de parte das outras pastas, como os da Educação, tinham também algo parecido, desde 2008. Em 2021, uma reforma administrativa conduzida por João Doria (PSDB) estendeu a bonificação a outras secretarias e autarquias e unificou o modelo de pagamento delas com a lei complementar 1.361, de 2021. Apenas os policiais militares, civis e técnico-científicos têm uma regulamentação própria. A bonificação não se confunde com a “participação nos resultados”, paga fiscais de renda, incluindo aposentados e pensionistas, e trabalhadores de empresas controladas pelo estado.
Entidades sindicais criticam desde aquela época a adoção da bonificação por ela não estar incorporada ao salário e, portanto, não refletir em outros vencimentos, como a aposentadoria — ela costuma ser vista por diferentes categorias também como um subterfúgio para não repor perdas salariais.
A legislação promulgada por Doria estabeleceu que uma Comissão Intersecretarial da Bonificação por Resultados (CIBR) deve receber, a cada período de avaliação, propostas de indicadores globais da secretaria ou autarquia envolvida na bonificação, para que possa deliberar as metas a serem cumpridas e a periodicidade de pagamento — quase todos os servidores são avaliados por resultados anuais, com exceção dos policiais militares e demais servidores da SSP, que são julgados por números bimestrais.
Essa comissão intersecretarial é composta pela Casa Civil, que auxilia diretamente Tarcísio e lidera o grupo, a Secretaria de Gestão e Governo Digital (SGGD) e a da Fazenda e Planejamento (Sefaz). As pastas são chefiadas hoje, respectivamente, por Arthur Lima, Caio Mario Paes de Andrade e Samuel Yoshiaki Oliveira Kinoshita. É o trio que publica no DOE-SP uma deliberação com as metas a serem cumpridas pelos servidores de cada órgão para que recebam o bônus.
O benefício só pode ser pago, no entanto, após uma segunda publicação no DOE-SP, na qual a própria secretaria ou autarquia envolvida publiciza uma nota técnica em que detalha quais objetivos foram alcançados, a partir de um cálculo feito por uma comissão setorial do próprio órgão.
Não há na legislação um calendário unificado de pagamento, o que faz com que algumas secretarias tenham um processo mais rápido do que outras. Nesse processo, a PM-SP também tem sido privilegiada.
Outros servidores sequer recebem
Desde a lei sancionada por Doria, a Secretaria de Saúde, por exemplo, só definiu e apurou resultados de 2023. A publicação da nota técnica daquele ano, o que permitiria avançar com o pagamento, ocorreu apenas em 15 de janeiro de 2025, após mobilização do Sindicato dos Trabalhadores Públicos da Saúde do Estado de São Paulo (SindSaúde-SP).
A título de comparação, mesmo com demora, os resultados de 2023 da Segurança Pública, incluindo os da PM, foram consolidados seis meses antes, em 14 de junho do ano passado. A SSP também já fechou valores relativos a 2024.
Para o presidente do SindSaúde-SP, Gervásio Foganholi, o preterimento da Saúde no pagamento do bônus faz parte de um desmonte da pasta, que conta também com a falta de contratações e de reajustes salariais, além da terceirização do serviço. “É um governo que prioriza a iniciativa privada, que está entregando tudo para as organizações sociais (OSS). Os governos anteriores também vinham fazendo isso, mas esse governo tem precarizado de uma forma brutal. Se você olhar o Diário Oficial, todos os dias têm alguma entrega de um equipamento de saúde para uma organização social”, afirma o sindicalista.
As carreiras da Saúde ainda brigam, entre outras coisas, pelo pagamento do bônus de 2024. A bonificação por resultados de 2022, ano em que os servidores foram sobrecarregados pela pandemia de Covid-19, nunca foi paga. “É uma questão ideológica. A prioridade desse governo do Tarcísio é a Polícia Militar, não é nem a segurança pública. Em relação às privatizações da Saúde, que agora ele está levando para a Educação, também é um projeto ideológico: ele não quer fazer gestão, quer fazer contrato, porque cada contrato é um cabo eleitoral”, diz Gervásio.
Além da Saúde, outros 24 órgãos estaduais, entre secretarias e autarquias, também só tiveram resultados de 2023 apurados no início de 2025, conforme levantamento da Ponte junto ao DOE-SP. Outras duas pastas, a de Direitos da Pessoa com Deficiência e a de Políticas para Mulher, sequer tiveram metas definidas até aqui, que são, evidentemente, anteriores à consolidação de resultados — ou seja, os servidores vinculados a elas não receberam valor algum relativo à bonificação.
Quanto aos resultados de 2024, para além da SSP, apenas a Educação e o Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza tiveram eles apurados. As demais secretarias e autarquias tinham até 19 de abril para enviar propostas de metas à CIBR, que ainda não deliberou quais foram as pactuadas.
Já sobre o bônus de 2022, outras 18 secretarias e autarquias tiveram o pagamento autorizado, com metas consolidadas entre setembro de 2023 e janeiro de 2024. No caso das polícias, no entanto, os objetivos da primeira metade de 2022 foram apurados já naquele mesmo ano, entre maio e setembro, o que permitiu o pagamento do bônus às vésperas das eleições gerais, em outubro.
Capital político com valorização da polícia
Para Fransérgio Goulart, coordenador-executivo da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR), pareceria lógico o governador privilegiar a Educação, com maior número de servidores, do que a PM-SP se a intenção fosse apenas angariar apoio político das pessoas diretamente beneficiadas com o bônus. Ele avalia, no entanto, que a valorização de policiais tem gerado capital político também entre eleitores que, embora não atuem na área, defendem um modelo de segurança pública militarizado.
“Existe um discurso, uma ideologia militar por trás disso, que está sendo incorporado pela sociedade. Nas eleições, há cada mais vez mais policiais e grupos ligados a eles chegando ao poder. É um projeto nacional de ocupação de cargos eletivos e de articulação com políticos”, diz Fransérgio.
O pesquisador cita o caso do Rio de Janeiro, onde a IDMJR está sediada, ao exemplificar como o fenômeno aparece em outros estados. Nos anos de 1990, o governo fluminense chegou a pagar a apelidada “gratificação faroeste”, um bônus associado ao número de confrontos policiais. Na atual gestão Cláudio Castro (PL), foi anunciado um prêmio de R$ 5 mil para cada apreensão de fuzil, o que deve aumentar o número de operações e, possivelmente, de mortes. “Essas gratificações agradam não só os policiais, mas também uma parte da sociedade que vê a necessidade de ter polícia em tudo, de potencializar essa lógica de guerra, de genocídio”, avalia Fransérgio.
A IDMJR defende, entre outras coisas, remanejar o orçamento das polícias para políticas sociais que promovam o bem-estar, como saúde, moradia e educação — a fim também de contrapor uma política de segurança pública que promove mortes, principalmente da população pobre e negra, e o encarceramento em massa sem enfrentar de fato as megaindústrias de armas e de drogas ilícitas, que enriquecem o crime organizado.
“É preciso monitorar de onde estão vindo esses recursos e, ao tratar de segurança pública, convocar não só os profissionais que atuam nela, mas dizer também, por exemplo, para os professores, para as pessoas em geral que esse dinheiro poderia estar indo para a Educação, para a Cultura, a Saúde.”
O que diz o governo Tarcísio
A Ponte solicitou entrevista com o secretário-chefe da Casa Civil, Arthur Lima, para falar sobre a bonificação por resultados, mas não obteve retorno. A reportagem também tentou, sem sucesso, obter uma manifestação por escrito da pasta, que, entre suas atribuições, deve assessorar diretamente o governador Tarcísio de Freitas. Se houver, o texto será atualizado.
Em seu pedido de posicionamento, a Ponte questionou, entre outras coisas, por qual razão os policiais militares tiveram uma fatia maior da bonificação no governo Tarcísio se comparado ao que representam no funcionalismo. Perguntou também sobre por quais motivos as pastas não têm um mesmo ritmo de pagamento.
Fonte: ICL Notícias