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Crônica da felicidade fake e do café amargo


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Reza a lenda, dessas que brotam como erva daninha em terreno fértil de redes sociais e conversas apressadas de elevador, que um certo “filósofo” – as aspas aqui não são mero capricho estilístico – decretou em algum momento de suposta iluminação: “gente feliz não enche o saco”. Ah, a doçura da simplificação, o bálsamo da frase de efeito! (amo!). A sentença se espalhou, replicada ad nauseam, ecoando em legendas de fotos sorridentes (muitas vezes financiadas em doze vezes no cartão), em posts motivacionais de coaches quânticos e até mesmo em canecas vendidas em lojas de departamento, estrategicamente posicionadas ao lado dos manuais de autoajuda.

O apelo é inegável. Quem não gostaria de um mundo onde a felicidade fosse o elixir, o antídoto universal contra a chatice alheia? Imagine só: ruas sem buzinas impacientes, filas de banco (com ou sem “Tio Paulo”), sem reclamações sussurradas, grupos de WhatsApp sem indiretas passivo-agressivas. Um paraíso de serenidade, onde todos flutuam em nuvens de contentamento, imunes à tentação de importunar o próximo. A frase, em sua superfície polida, vende uma utopia de bem-estar individual como solução para os mais diversos conflitos sociais. Se cada um cuidasse da própria felicidade, o mundo seria um lugar magicamente mais agradável. Simples assim. Tão simples que chega a ser suspeito, como promessa de dinheiro fácil no tigrinho ou no brazino, o jogo da galera.

Mas, como toda pílula dourada que promete curas milagrosas, essa também traz em seu núcleo um vazio incômodo, uma ausência que o tal guru, talvez ocupado demais em monetizar sua própria felicidade, esqueceu de mencionar. A pergunta que fica engasgada na garganta, arranhando como poeira em dia seco, é brutalmente simples: quem, em sã consciência (e com os boletos em dia), está genuinamente feliz neste admirável mundo novo do capitalismo tardio?

Navegamos, e naufragamos, na sociedade do cansaço, como bem apontou Byung-Chul Han, onde a exploração não vem mais apenas do patrão opressor, mas de nós mesmos e de bom grado, impelidos por uma cobrança interna de desempenho que nos transforma em nossos próprios algozes. Somos atletas exaustos de uma maratona sem linha de chegada, dopados por positividade tóxica e pela pressão de parecer feliz, produtivo, bem-sucedido – e, claro, postar tudo isso com a hashtag #gratidãogratiluz. Vivemos a era do precariado, essa classe social difusa e crescente dos que pulam de bico em bico, de contrato temporário em aplicativo de entrega, sem garantias, sem direitos, com a corda da insegurança permanentemente no pescoço. A estabilidade virou artigo de luxo, a segurança, uma miragem no deserto da flexibilização. Como cultivar a felicidade genuína nesse solo árido, adubado com ansiedade e regado a todo tipo de entorpecente com rivotril?

A resposta à incômoda pergunta paira no ar, blowin’ in the wind, densa como o fogo e a fumaça que queima a Amazônia. O fato é que uma minoria pode se dar ao luxo de cultivar alguma coisa nessa loucura da razão econômica. Uma minoria tão diminuta que chega a ser estatisticamente irrelevante, mas ruidosamente presente, exibindo suas vidas editadas em filtros sépia e legendas inspiradoras. Para a esmagadora maioria, a realidade tem a delicadeza da marreta do Tarcísio de Freitas em dia de leilão ou de remoção. A felicidade, essa entidade etérea e cobiçada, parece ter se tornado um artigo de luxo, inacessível como um apartamento com vista para o mar ou um café gourmet sem o gosto amargo da culpa por gastar o que não se tem.

Falando em café, o grão se tornou uma profunda maldição, de droga do capitalismo industrial, hoje é droga refinada só para os que podem pagar e para os que ganham para além de 10 salários mínimos. Eis um microcosmo perfeito da nossa tragicomédia cotidiana. Aquele cafezinho, antes um prazer simples, um respiro breve na rotina, hoje ostenta preços que flertam com o absurdo. Dizem que paga-se pelo grão importado da Etiópia, colhido por monges ao luar, moído na hora por um barista com nome de personagem de série nórdica. Ou vai ver é só o colapso ambiental mesmo, que levou a produção mundial à bancarrota. Em todo caso, paga-se pela experiência, pelo ambiente “instagramável”, pela sensação fugaz de pertencimento a um clube seleto que pode desembolsar o valor de um almoço por uma xícara fumegante. Enquanto isso, o sujeito que acorda às quatro, às cinco da manhã para pegar três conduções toma seu pingado aguado no balcão da padaria, sonhando com o dia em que a felicidade terá um preço mais acessível, talvez na promoção “leve 2, pague 1”.

Lembro-me, com uma pontada de ironia que faria o próprio defunto autor sorrir por baixo da terra fria, das palavras de Brás Cubas, aquele filósofo do além-túmulo que dissecou a alma humana e a sociedade de seu tempo com um bisturi embebido em ceticismo, revolta, cinismo e melancolia. Em suas memórias póstumas, ele confessa, quase como um alívio sombrio: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria.” Talvez, no fundo, o maior ato de compaixão neste nosso admirável mundo capitalista seja justamente poupar as futuras gerações desse legado.

Então, da próxima vez que ouvir o mantra “gente feliz não enche o saco”, permita-se um sorriso torto, meio Brás Cubas, meio Coringa. Talvez a verdadeira subversão não seja buscar a felicidade a qualquer custo, mas abraçar a honestidade da nossa miséria e descontentamento. Talvez “encher o saco” seja, afinal, um ato de resistência. Um grito abafado e desesperado contra a tirania do contentamento forçado, um lembrete de que somos sujeitos atormentados e contraditórios e, sim – como dizem os donos do divã – quase que invariavelmente infelizes. E que talvez, só talvez, a infelicidade compartilhada seja mais autêntica – e até mais suportável – do que a alegria solitária e fabricada que nos tentam vender a preço de banana…ou melhor, a preço de café comum, o novo (e antigo) artigo de luxo do capitalismo histórico.





Fonte: ICL Notícias

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