GOVERNO FEDERALspot_imgspot_img
24.3 C
Manaus
GOVERNO FEDERALspot_imgspot_img
InícioNotícias do BrasilDos nepo babies e suas falácias 

Dos nepo babies e suas falácias 


ouça este conteúdo

00:00 / 00:00

1x

Com um café meio amargo e meio frio, na manhã de hoje comecei a vasculhar notícias aqui pelos portais digitais. Uma delas me chamou a atenção de imediato. Malia Ann Obama, filha primogênita do ex-presidente Barack Obama e de Michelle Obama, decidiu adotar profissionalmente apenas seu primeiro nome e o nome do meio, abandonando o peso (e, eventualmente, as vantagens) do sobrenome Obama. A jovem, que aos 26 anos já dirige filmes em Hollywood, creditou seu curta-metragem “The Heart” simplesmente como “Malia Ann”.

Que demonstração de independência, não?! Que bela tentativa de… bem, de fingir que não é filha de quem é. Porque, convenhamos, por mais que Malia queira se livrar do sobrenome, ela não conseguirá se livrar da herança cultural, social e, principalmente, econômica que carrega. Afinal, quantos jovens de 26 anos têm acesso direto aos círculos de poder de Hollywood? Quantos conseguem financiamento para seus projetos artísticos sem ao menos piscar? Quantos têm a agenda telefônica – e o poder econômico e simbólico dos pais – repleta de contatos que podem abrir qualquer porta? Por óbvio que o exemplo de Malia Ann não é dos melhores em termos de heranças estruturais do patriarcado capitalista ocidental, majoritariamente branco. Ao menos a jovem é representante de uma certa cisão dentro do racismo estrutural americano.

Contudo, o que nos interessa aqui é: que diabos significa esse termo que virou febre nas mídias sociais?! (Virou faz um tempinho, eu sei, mas só agora o historiador aqui pode parar para escrever a respeito).”Nepo baby” é uma contração de “nepotism baby” – literalmente, “bebê do nepotismo”. Refere-se àquelas celebridades, artistas, empresários, políticos, herdeiros de todo tipo, figuras públicas que alcançaram posições de destaque não exatamente por seus méritos individuais, mas sim por serem filhos, netos, sobrinhos ou parentes próximos de pessoas já estabelecidas em suas respectivas áreas. A palavra “nepotismo” deriva do latim “nepos” (genitivo: “nepotis”), que originalmente significava “neto”, “sobrinho” ou “descendente”. Esta palavra latina vem do indo-europeu “nepot-“, que significava “neto, descendente outro que não o filho”. O termo “nepotismo” surgiu especificamente no contexto da Igreja Católica medieval. Durante os séculos XV e XVI, alguns papas tinham filhos naturais (ilegítimos), mas por questões de decoro (e hipocrisia), os chamavam publicamente de “nipoti” (em italiano) ou “nepos” (em latim), que significa “sobrinhos”. Ahhh a Igreja, sempre inventando as “melhores” tradições, incluindo a corrupção institucional.

Contudo, o nepotismo, como sabemos, é uma prática tão antiga quanto a assim chamada “civilização”. Desde os faraós egípcios que passavam o trono para seus filhos (independentemente de sua capacidade de governar) até os imperadores romanos que adotavam herdeiros para garantir a continuidade dinástica, a humanidade sempre teve uma quedinha especial por manter o poder “em família”. Mas o que torna o fenômeno dos “nepo babies” particularmente interessante em nossa época é a forma como ele se manifesta em uma sociedade que, teoricamente, valoriza a meritocracia. Vivemos – no mínimo desde a indústria da publicidade dos anos 1960 –  em tempos onde se prega que “qualquer um pode chegar lá” desde que trabalhe duro o suficiente. É a famosa narrativa do “self-made man” americano, do empreendedor que começou do zero e construiu um império. Pura balela, é claro, mas uma balela muito bem vendida. A verdade inconveniente é que a grande maioria dos “sucessos” que vemos hoje em dia tem sobrenome, tem herança, tem conexões familiares. E isso não é necessariamente algo reprovável de antemão – afinal, é natural que pais queiram ajudar seus filhos, coitadinhos. O problema surge quando essa realidade é mascarada por discursos meritocratas que fazem os menos favorecidos acreditarem que a culpa por não “vencerem na vida” é exclusivamente deles.

E aqui chegamos ao ponto central de nossa reflexão: o capitalismo, tal como o conhecemos hoje, não é um sistema baseado na livre concorrência entre indivíduos talentosos, mas sim uma gigantesca rede de famílias poderosas que se perpetuam no poder através das gerações. É o que podemos chamar de “capitalismo familiar” – e que representa, pasmem, entre 60% e 95% da economia dos diferentes países “desenvolvidos”. Pensem comigo: quando falamos dos grandes impérios empresariais mundiais, estamos falando de dinastias. A família Walton (Walmart), os Kochs (indústria petroquímica), os Rothschilds (sistema financeiro), os Rockefellers (petróleo e finanças), os Murdochs (mídia), os Trumps, os Bezos (que já estão preparando a próxima geração), os tresloucados Musks. A lista é interminável. Esses não são “empreendedores” no sentido romântico da palavra – são herdeiros administrando impérios construídos por seus antepassados. Certamente alguns herdeiros herdaram mais, outros menos, mas herdaram, não partiram do zero. E aqui está a grande ironia: o mesmo sistema que prega a meritocracia é estruturado de forma a garantir que o mérito seja, na verdade, hereditário. Como? Através de uma combinação perversa de capital econômico, capital cultural e capital social que é transmitido de geração em geração como uma herança invisível, mas muito mais valiosa que qualquer testamento. Vale dizer, o capitalismo é o sistema mais nepotista de todos os tempos, sobretudo por convencer os outros de que não é.

O capital econômico é óbvio: dinheiro gera dinheiro. Quem nasce rico tem acesso a melhores escolas, melhores universidades, melhores oportunidades de investimento. Pode se dar ao luxo de “fracassar” algumas vezes antes de acertar, porque tem uma rede de segurança financeira que a maioria da população jamais sonhará em ter. O capital cultural é mais sutil, mas igualmente poderoso: é o conhecimento dos códigos sociais, das referências culturais, da forma “correta” de se comportar nos círculos de poder. É saber qual vinho pedir em um jantar de negócios, qual universidade mencionar em uma conversa casual, como se vestir para causar a impressão adequada. Essas coisas não se aprendem em cursos – se herdam. E o capital social? Ah, esse é o mais valioso de todos: é a rede de contatos, as conexões familiares, os “amigos da família” que podem abrir portas com uma simples ligação telefônica ou – hoje – uma mensagem de whatsapp. É o que permite que um jovem de 22 anos, recém-formado, consiga um estágio em uma empresa de prestígio não porque é o melhor candidato, mas porque seu pai jogou golfe com o diretor na semana passada.

E assim chegamos à grande farsa da meritocracia moderna. Ela existe, sim, mas apenas dentro de cada classe social. Os pobres competem entre si pelos empregos de baixa remuneração, a classe média compete entre si pelos cargos de gerência, e os ricos… bem, os ricos não precisam competir. Eles já nasceram na linha de chegada. O mais fascinante é como essa estrutura se mantém através de um discurso que a nega. Quantas vezes não ouvimos histórias de “jovens empreendedores” que “revolucionaram” o mercado? Bill Gates, que “abandonou Harvard para criar a Microsoft” (esquecendo de mencionar que seu pai era um advogado influente e sua mãe estava no conselho da IBM). Mark Zuckerberg, o “gênio” que criou o Facebook no dormitório de Harvard (omitindo o fato de que estudar em Harvard já é, por si só, um privilégio de classe). Elon Musk, o “visionário” que “começou do zero” (ignorando convenientemente que seu pai era dono de uma mina de esmeraldas na África do Sul). Esses não são exemplos de meritocracia – são exemplos perfeitos de como o sistema consegue transformar privilégio em narrativa de sucesso individual. E o mais perverso é que essas narrativas servem para justificar a desigualdade: se eles conseguiram “vencer na vida” através do esforço próprio, então quem não consegue é porque não se esforçou o suficiente.

Mas tudo pode sempre piorar. E aqui chegamos à conclusão mais devastadora da prosa de hoje: a esmagadora maioria dos proprietários elitizados de hoje, e também de uma significativa parcela da classe média, são também nepo babies. Não necessariamente filhos de celebridades ou políticos famosos, mas herdeiros de algum tipo de privilégio familiar que lhes deu vantagem na corrida da vida. Olhem ao redor, caras leitoras e leitores. Quantos dos “bem-sucedidos” que conhecem realmente começaram do zero absoluto? Quantos não tiveram, ao menos, pais com ensino superior que puderam orientá-los sobre a importância da educação? Quantos não cresceram em bairros onde ter livros em casa era normal? Quantos não tiveram acesso a cursos de idiomas, aulas particulares, viagens que ampliaram seus horizontes? O médico “self-made” geralmente é filho de professores. O advogado “batalhador” costuma ter pais funcionários públicos estáveis. O empresário “visionário” frequentemente cresceu em uma família de comerciantes. Mesmo quando não há herança financeira direta, há herança cultural, social, educacional. Há, no mínimo, a herança da estabilidade – algo que quem nasce na pobreza extrema jamais conheceu. E não estou aqui para demonizar isso. É absolutamente compreensível que famílias queiram transmitir vantagens para seus filhos. O problema surge quando essa realidade é falseada e negada, quando se constroi a mais falaciosa ideia de que vivemos em uma sociedade verdadeiramente meritocrática.

A questão dos nepo babies de Hollywood é apenas a ponta do iceberg. Eles são os casos mais visíveis de um fenômeno muito mais amplo e estrutural. Por cada ator filho de ator que vemos nas telas, há milhares de empresários filhos de empresários, médicos filhos de médicos, advogados filhos de advogados, que perpetuam suas posições sociais de geração em geração. Os nepo babies existem, dominam a economia, controlam a política, definem a cultura. E não adianta fingir que não é assim. O que podemos fazer é, no mínimo, ser honestos sobre essa realidade. Parar de vender a ilusão de que vivemos em uma meritocracia pura e reconhecer que o sucesso, na maioria das vezes, é uma combinação de talento, esforço e, principalmente, sorte – a sorte de nascer na família certa, no lugar certo, na hora certa.

Enquanto isso, nós historiadores e observadores da condição humana, continuaremos aqui para lembrar que, por trás de cada fortuna (seja o dinheiro ou a sorte), há sempre uma grande herança – seja ela financeira, cultural ou social. Afinal, como diria um velho ditado que acabei de inventar: “Por trás de todo self-made man, há sempre um pai que o fez.”

 

 





Fonte: ICL Notícias

- Patrocinado -spot_imgspot_img

Últimos artigos

R6 News Mais

- GOVERNO FEDERAL -spot_imgspot_img

R6 NEWS

spot_imgspot_img
×

Olá, venha fazer parte do grupo mais informativo de Manaus.

Entrar no Grupo