Cercada por árvores queimadas na comunidade Camuti, a indígena mura Maria de Souza Pantoja, 69, conta, ainda aflita, como perdeu a plantação, mas conseguiu livrar do fogo seu único bem material: uma casa de palha. O poço sem bomba, que exige a descida e subida de um balde de cinco litros preso a uma corda, salvou a moradia na aldeia Tauari, em Autazes, município da área de influência da BR-319, no Amazonas.
“Ficamos até tarde da noite ensopando de água a palha para ela não pegar fogo. Esse fogo é coisa que nunca vi. Ele vem não sei de onde e vai cercando a gente”, conta ela, sob o sol quente em um céu com fumaça. “É muito triste, o fogo está acabando com tudo isso aí, ó”, completa, apontando o indicador e os olhos para os troncos de árvores queimados.
Essa paisagem se tornou comum na comunidade e em praticamente todos os ramais às margens da BR-319 no município.
Com a estiagem nos rios do Amazonas em marcas históricas, os cursos d’água secaram na aldeia. A maior parte das cidades do estado não tem estrutura nem planejamento para lidar com os incêndios florestais e com a vazante, problemas sazonais na região.
Desde julho, a floresta queima e a fumaça densa invade comunidades rurais e áreas urbanas no entorno da rodovia. Em 12 de setembro, o governo do Amazonas decretou estado de emergência ambiental nas regiões do arco do fogo e na região metropolitana de Manaus.
Lábrea, Manicoré e Humaitá, 3 dos 13 municípios que estão na área de influência e expansão do desmatamento pela BR-319, estão inclusos no decreto. O fogo não poupou, porém, cidades que ficaram de fora do documento, como Autazes.
Saindo de Manaus e passando pelos municípios de Careiro da Várzea, Manaquiri e Autazes, a paisagem da margem da rodovia mudou: rios, lagos e igarapés estão secos e a mata, queimada.
Num trecho de igarapé que virou lago, garças, falcão e mergulhões disputam com piranhas os peixes que estão amontoados na pouca água. O cheiro da fumaça, mesmo sem o fogo alto do início do mês, ainda está presente e irrita os olhos e a garganta de quem trafega neste trecho da BR-319.
Autazes registrou um salto nos focos de queimadas na comparação de setembro de 2022 (132 focos) com o mesmo mês em 2023 (223, até o momento). Em 2022, no ano completo, foram 256 os focos na cidade. Até agora em 2023, o município já soma 488.
Dados do sistema Alarmes do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da UFRJ (Lasa/UFRJ) estimam que Autazes queimou, até agora, o equivalente a 41,5 mil campos de futebol. O valor supera em 248% as queimadas registradas no mesmo período do ano passado, quando cerca de 11,9 mil campos de futebol incendiaram.
Nas comunidades indígenas muras ao longo do ramal Novo Céu, o desespero para salvar moradias, animais, roças e suas próprias vidas reflete os números.
Maria Pantoja conta que precisou pernoitar na aldeia vizinha Terra Preta, onde moram parentes, por medo do fogo alto, mesmo com a palha de sua casa ensopada de água. O incêndio durou quase duas semanas, segundo a indígena.
A comunidade não teve como evitar a perda do chapéu de palha, estrutura onde há cerca de um ano faziam suas reuniões, e da plantação de mandioca, que seria usada para produção de farinha. Nem a cerca que indicava o início do território, com uma placa da Funai, escapou do fogo.
A indígena mura Ana Rita Gonçalves de Andrade, 32, diz que a roça queimada afeta a todos porque as plantações eram usadas para venda e alimentação própria.
“Encontramos garrafas de cerveja pelo ramal. Não sei quem taca fogo, mas quem paga o pato é quem se serve da terra e vive da terra. Perdemos a plantação de mandioca para fazer farinha, cará, banana, abacaxi. Só não vai ser pior porque a gente tem o Bolsa Família”, disse.
Na comunidade Ramal do Tauari, também na aldeia Tauari, outro grupo de indígenas muras observa da estrada de barro, sob o sol de meio-dia, a fumaça e a brasa que parecem querer reacender numa área queimada há poucos dias.
“Estamos há um mês lutando com isso. Não dá para dormir, não dá tempo de comer. O bombeiro veio aqui uma vez. Na mata, eles [os bombeiros] não conseguem, só nós mesmos, com a ajuda de Deus”, afirma Cleide Mura.
Ela conta que os indígenas usaram um grupo de WhatsApp para pedir socorro. A união da comunidade, diz, impediu um dano pior. Mulheres correram com vassouras e ciscadores para fazer aceiros (trechos sem vegetação) e homens, com baldes e bombas de água nas costas.
“Era bem pouquinha a água e a gente tinha que voltar logo. Quando secava um poço, ia para o do vizinho”, lembra.
Lavíne Mura, que tem um filho de dois anos, quando viu o fogo se aproximar e a fumaça forte entrar na sua casa, decidiu também ajudar nas ações para apagar o incêndio. Ela relata que, nessas noites, perdia o sono pelo medo de acordar queimada com o filho e pela tosse da criança.
“A gente estava com medo de dormir e não acordar mais. Meu filho quase não dormia de noite com tanta fumaça dentro de casa. Branquejava tudo”, conta.
O coordenador da Funai Manaus, Emílson Munduruku, afirma que é preciso investigar as queimadas na região. Ele aponta como possíveis causas as mudanças climáticas, associadas ao hábito de indígenas e ribeirinhos de queimarem roçados e lixo.
Ele não descarta ainda o interesse nas terras em razão da proximidade com a BR-319 e de um projeto de exploração de potássio na região. “Mas tem que investigar, porque outras áreas, sem BR e sem potássio, também estão queimando”, diz. “A Funai tem assumido uma frente, articulando com outros órgãos e parceiros, para combate às queimadas nas TIs [terras indígenas].”
A geógrafa e diretora científica do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), Ane Alencar, afirma que, neste ano, áreas mais ao norte do Amazonas e próximas ao Pará começaram a queimar antes do que geralmente ocorre. Ela atribui essa alteração ao fenômeno El Niño.
“O El Niño cria as condições ideais de seca para que a queimada se espalhe, saia do controle e vire um incêndio”, explica.
Fogo em outras regiões
Fora do eixo de influência da BR-319, a Terra Indígena Andirá-Marau, entre os estados do Pará e do Amazonas, é o terceiro território com o maior número foco de queimadas (332) em 2023, segundo o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).
Os dois primeiros ficam no Tocantins: a TI Parque do Araguaia (1020) e a TI Inawebohona (508).
Na aldeia Simão, da TI Andirá-Marau, sem apoio do Estado inicialmente, os indígenas conseguiram fazer o controle do fogo após serem treinados por um brigadista pago por voluntários da cidade de Barreirinha (AM). Depois, o local recebeu apoio do Ibama e de órgãos estaduais.
De acordo com Francinaldo de Matos Pinto, biólogo e apoiador técnico do Centro de Informações Estratégicas de Vigilância em Saúde da Sesai, crianças, jovens e idosos tentaram controlar o fogo na aldeia. “Quando começou a queimar, quem apagava eram os próprios indígenas com galhos de árvore, levando água das cabeceiras”, diz.
Segundo ele, uma busca ativa tem sido feita para identificar os efeitos do fogo e da fumaça na saúde das populações que vivem nas 96 aldeias da TI.
“Eles inalam fumaça, perdem roçado, perdem plantas medicinais e floresta. Perdem o bem-estar”, conclui.