Após a tese do Marco Temporal ser derrubada no Supremo Tribunal Federal (STF) após dois anos de julgamento, o assunto segue em discussão no Congresso Nacional. Nesta quarta-feira, 27, o texto do relator de um Projeto de Lei que fixa o entendimento na legislação, o senador Marcos Rogério (PL-RO), voltará a ser analisado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).
Entre especialistas, há um consenso de que o parlamento tem autonomia para debater o tema caso ache conveniente, mas o que o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) questiona é como tem feito isso. Segundo a entidade indigenista, a questão deveria ser debatida não por meio de um Projeto de Lei, mas sim por uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC).
“Essa prerrogativa tem que ser feita de forma normal, de forma legal. Não por meio de um projeto de lei. Portanto, o que está ocorrendo hoje no legislativo, ao nosso ver, é uma irregularidade”, disse o secretário-executivo do Cimi, Antônio Eduardo.
De acordo com Ana Paula Abinajim, advogada especialista em direito constitucional, a Suprema Corte só pode se posicionar novamente sobre a tese do Marco Temporal caso for instigada em um cenário onde a proposta em trâmite no Senado já se tornou lei. “Caso se torne lei ela será analisada. E, caso houver a identificação de alguma inconstitucionalidade, será declarada inconstitucional”, explicou.
Conforme o advogado Max Kolbe, a preocupação gira em torno de uma possível disputa entre legislativo e judiciário. “Se o Poder Legislativo cria uma norma, seria absolutamente contrária a separação dos poderes se o STF fizer uma nova análise dessa lei criada pelo Congresso Nacional. Então haveria um colapso de entendimento”, detalhou.
A CCJ do Senado adiou na semana passada a votação do projeto 2903, após a leitura do parecer favorável ao PL apresentado pelo senador Marcos Rogério. Também atendeu a um pedido de vista [tempo maior para análise] coletivo de senadores da base aliada ao Governo Lula (PT). Governistas ainda tentaram postergar a análise com intuito de convocar audiência pública para debater o tema, mas a base acabou derrotada por 15 votos a 8.
O Projeto de Lei 2903 determina que os indígenas só têm direito às terras que ocupavam ou disputavam em 5 de outubro de 1988, quando foi promulgada a atual Constituição Federal. O texto foi aprovado na Câmara dos Deputados, em maio, e já passou pela Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) do Senado. Se também for aprovado no plenário pelos senadores sem alteração, o projeto vai à sanção.
A proposta em trâmite no Senado também prevê a permissão para plantio de transgênicos em terras exploradas pelos povos indígenas, a adequação dos processos administrativos de demarcação ainda não concluídos às novas regras, bem como a nulidade da demarcação que não atenda a esses requisitos.
STF invalida Marco Temporal
O STF derrubou por nove votos a dois a tese do Marco Temporal, no último dia 21 de setembro. A discussão colocou em lados opostos ruralistas e povos originários, que saíram vitoriosos da disputa.
A análise no STF começou em 26 de agosto de 2021, a partir de um recurso apresentado Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) contra o Marco Temporal. A demarcação de terras indígenas é um direito garantido pela Constituição Federal de 1988, que estabelece aos indígenas o chamado “direito originário” sobre as suas terras ancestrais. Isso quer dizer que eles são considerados, por lei, os primeiros e naturais donos do território, sendo obrigação da União demarcar todas as terras inicialmente ocupadas por esses povos.
Para o Instituto Socioambiental (ISA), o Marco Temporal vinha sendo utilizada pelo Governo Bolsonaro para travar demarcações, sendo incluída em propostas legislativas anti-indígenas. Defensores da causa dos povos originários temiam que demarcações de terras já feitas fossem revogadas caso o STF validasse o entendimento.
Proprietários rurais, por sua vez, argumentavam haver necessidade de se garantir segurança jurídica com relação ao tema e apontavam o risco de desapropriações caso a tese fosse derrubada.
Se a tese do Marco Temporal fosse validada pelos magistrados, indígenas poderiam ser expulsos de terras ocupadas por eles, caso não comprovassem que estavam lá na data da promulgação da Constituição de 1988 e sem que fossem considerados os povos que já foram expulsos ou forçados a sair de seus locais de origem. Processos de demarcação de terras indígenas históricos, que se arrastavam por anos, ainda poderiam ser suspensos.