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Na sala da audiência – ICL Notícias


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Por Tarcísio Motta

Começou devagar. O juiz entrou, cumprimentou formalmente os presentes, e chamou o primeiro depoente. Um preposto da Volkswagen — terno, cabelo de repartição meticulosa. Eu ali sentado, junto de outros representantes dos movimentos sociais, vendo o relato da impunidade que atravessou décadas até chegar naquela sala de audiência.

Estava ali com a missão oficial da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Fomos apurar, ouvir, estar junto. A principal atividade era a audiência de instrução e julgamento da ação civil pública contra a Volkswagen do Brasil. R$ 165 milhões. Esse é o valor que o Ministério Público do Trabalho cobra da empresa como indenização por danos morais coletivos. Mas a dor ali, naquele salão de audiência, não se mede em cifras. Tem outra textura — a da injustiça arrastada por quase meio século.

Entre 1974 e 1986, a Volkswagen operou a Fazenda Vale do Rio Cristalino, por meio de uma subsidiária que levava o nome burocrático de Companhia Vale do Rio Cristalino (CVRC). Era uma operação estruturada, financiada com recursos públicos — da Sudam, do Banco da Amazônia — em plena ditadura militar. A montadora alemã diversificava seus investimentos e aproveitava os incentivos para desbravar, como diziam na época, a Amazônia. O resultado foi a criação de um regime de trabalho baseado em dívidas forjadas, isolamento e violência. Escravidão moderna, com selo de indústria global.

A estratégia da defesa da Volks era clara: distância. “A Volkswagen só tinha 10% da Companhia Vale do Rio Cristalino”, dizia o preposto, como se a multinacional alemã fosse uma espécie de investidor distraído que, por engano, acabou dono de uma fazenda no sul do Pará onde centenas de trabalhadores foram submetidos a condições análogas à escravidão durante a ditadura. “Não tenho conhecimento” virou bordão. Mas não sem deslizes: ele próprio admitiu que a empresa enviou técnicos à fazenda, “para conhecer a operação”. Conhecer, mas não se responsabilizar.

A cada nova pergunta do juiz ou do Ministério Público, mais escorregadio ele ficava. As empreiteiras é que contratavam os trabalhadores, dizia. A Volks teria apurado denúncias, mas — surpresa — não achou nada errado. Só que, segundos depois, ele garantiu: “Não houve irregularidades”. A lógica da defesa se desfazia diante das contradições do próprio porta-voz.

De onde eu estava, a sensação era de que a Volkswagen tinha enviado um preposto para lavar as mãos em público. Negaram qualquer possibilidade de acordo. E, se dependerem só desse depoimento, estão fritos.

Depois veio o Expedito — operário da Volkswagen nos anos 70, demitido por “justa causa”. Depôs por videoconferência de São Paulo, com a expressão cansada de quem carrega décadas de lembranças amargas. A defesa tentou desqualificá-lo. Alegaram que ele tinha “interesse na causa”, como se fosse possível alguém ver e viver o que ele viu e ainda manter neutralidade. O juiz não o aceitou como testemunha, mas o ouviu como informante. O que ele contou foi revelador: trabalhadores amarrados, capatazes armados, ameaças. O tipo de coisa que não se apaga da memória.

Mas os relatos mais contundentes ainda estavam por vir. Raul Batista de Souza e Pedro Pereira Vasconcelos — ambos resgatados da escravidão. Raul foi aliciado em Tocantins por um “gato” e levado à fazenda. Comprava tudo na cantina, a dívida crescia como capim e, quando não deu mais, foi “vendido” para outro gato. Fugiu escondido no mato por nove dias. Pedro, por sua vez, disse que até a foice era descontada do pagamento. Só podia sair com autorização por escrito. Capatazes armados, comida ruim, violência. A mesma engrenagem moendo vidas.

José Ribamar Viana tinha 17 anos quando entrou na fazenda. A promessa era um trabalho decente. O “gato” dizia que até campo de futebol tinha. Tinha mesmo — um “gramadinho” — mas ninguém podia pisar lá. Na entrada da fazenda, uma corrente com o símbolo da Volkswagen. O que deveria significar progresso era, na prática, o selo de uma prisão rural.

O Ministério Público insistiu para que o Padre Ricardo Rezende fosse ouvido. Foi ele quem, décadas atrás, ouviu o relato dos trabalhadores fugidos, articulou a ida de parlamentares à fazenda e levou o caso ao governador. A defesa tentou impedi-lo. “Tem interesse na condenação”, disseram, como se o problema fosse o padre, e não a empresa. O juiz permitiu que falasse como informante. Contou sobre as mais de 600 pessoas impedidas de sair da fazenda por dívida, sobre o silêncio institucional, sobre a frustração de esperar que uma empresa, que dizia estar fazendo um mea culpa pela atuação na Alemanha nazista, agisse diferente no Brasil.

No fim, ninguém mais seria ouvido. Restam agora 15 dias úteis para as alegações finais e a promessa de uma sentença em 30 dias úteis. Enquanto isso, os que ali estavam anotavam as presenças, registravam os rostos, seguravam a indignação.

Estar em Redenção naquele tribunal, ouvindo cada um desses relatos, não era apenas cumprir uma agenda parlamentar. Era encarar a história, no seu rosto mais perverso. Era afirmar, com toda a firmeza: a justiça tardia precisa chegar, porque cada dia de impunidade prolonga a violência. Ao lado dos trabalhadores, da CPT, do padre Ricardo, do MST, seguimos exigindo o que deveria ser óbvio: justiça e reparação.

 





Fonte: ICL Notícias

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