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(Folhapress) – Mais de 400 pessoas de dezenas de nacionalidades assinam uma carta aberta em defesa das instituições democráticas, da liberdade acadêmica, da cultura e da ciência. Sua divulgação, nesta sexta-feira (13), ocorre cem anos após a “Carta dos intelectuais antifascistas”, publicada na Itália.
Entre os signatários, de 37 países, estão principalmente acadêmicos, além de escritores, jornalistas e médicos. Destes, 31 são vencedores do Nobel, a exemplo de Gary Ruvkun e Victor Ambros (ambos laureados em Fisiologia e Medicina em 2024), May-Britt Moser e Edvard I. Moser (Fisiologia e Medicina, 2014), Pierre Agostini (Física, 2023), Takaaki Kajita (Física, 2015), Joachim Frank (Química, 2017) e Jean-Pierre Sauvage (Química, 2016).
Do Brasil, assinam a carta o climatologista Carlos Nobre, a professora Daniela Campello (FGV), a professora Lena Lavinas (Universidade Federal do Rio de Janeiro), o professor Luiz Eduardo Soares (Universidade Federal do Rio de Janeiro), o jornalista Marcelo Coelho, a professora Maria Hermínia Tavares (USP), colunista da Folha de S.Paulo, e o professor Paulo Artaxo (USP).
Na carta, é dito que a ameaça do fascismo está de volta, com a ascensão nas últimas décadas da extrema direita. Esses movimentos, de acordo com o texto, guardam traços que remetem ao regime de Benito Mussolini. Os representantes dessa grupo atacam a independência da Justiça, da imprensa e das instituições de cultura, educação e ciência.
Confira a carta na íntegra
Na carta com mais de 400 assinaturas de dezenas de nacionalidades, é dito que a ameaça do fascismo está de volta, com a ascensão nas últimas décadas da extrema direita (Foto: Reprodução)
Cem anos depois: uma nova carta aberta contra o retorno do fascismo
“Em 1º de maio de 1925, com Mussolini já no poder, um grupo de intelectuais italianos denunciou publicamente o regime fascista por meio de uma carta aberta. Os signatários, cientistas, filósofos, escritores e artistas, posicionaram-se em defesa dos princípios fundamentais de uma sociedade livre: o Estado de Direito, a liberdade individual e a independência de pensamento, da cultura, da arte e da ciência. Este desafio aberto à brutal imposição da ideologia fascista, com todos os riscos que isso comportava, provou que resistir não era apenas possível, mas necessário. Hoje, cem anos depois, a ameaça do fascismo está de volta, e é nosso dever reunir essa coragem para a enfrentar novamente.
O fascismo surgiu em Itália há um século, marcando o início da ditadura moderna. Em poucos anos, espalhou-se pela Europa e pelo mundo, assumindo nomes diferentes, mas mantendo formas semelhantes. Onde quer que tenha tomado o poder, destruiu a separação entre os Poderes ao serviço da autocracia, silenciou a oposição por meio da violência, controlou a imprensa, interrompeu o avanço dos direitos das mulheres e esmagou as lutas dos trabalhadores por justiça econômica. Inevitavelmente, infiltrou e distorceu todas as instituições dedicadas a atividades científicas, acadêmicas e culturais. O seu culto à morte exaltou a agressão imperialista e o racismo genocida, desencadeando a Segunda Guerra Mundial, o Holocausto, a morte de dezenas de milhões de pessoas e crimes contra a humanidade.
Ao mesmo tempo, a resistência ao fascismo e às diversas ideologias fascistas tornou-se um terreno fértil para imaginar formas alternativas de organizar as sociedades e as relações internacionais. O mundo que emergiu da Segunda Guerra Mundial, com a Carta das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, os fundamentos teóricos da União Europeia e os argumentos jurídicos contra o colonialismo permaneceu marcado por profundas desigualdades. Ainda assim, representou uma tentativa decisiva de estabelecer uma ordem jurídica internacional: uma aspiração por democracia e paz globais, fundamentadas na proteção dos direitos humanos universais, não apenas civis e políticos, mas também econômicos, sociais e culturais.
O fascismo nunca desapareceu, mas por um tempo foi contido. No entanto, nas últimas duas décadas, assistimos a uma nova onda de movimentos de extrema direita, com frequentes traços fascistas inconfundíveis: ataques às normas e instituições democráticas, nacionalismo revigorado com retórica racista, impulsos autoritários e agressões sistemáticas contra os direitos daqueles que não se encaixam numa autoridade tradicional fabricada, baseada na normatividade religiosa, sexual e de gênero.
Esses movimentos ressurgiram em todo o mundo, nomeadamente em democracias consolidadas, onde a insatisfação generalizada com o fracasso político em enfrentar as crescentes desigualdades e a exclusão social foi mais uma vez explorada por novas figuras autoritárias.
Fiéis à velha retórica fascista, sob o disfarce de um mandato popular ilimitado, essas figuras minam o Estado de Direito nacional e internacional, atacam a independência do poder judicial, da imprensa, das instituições culturais, de educação superior e de ciência, chegando até a tentar destruir dados essenciais e informações científicas. Fabricam “fatos alternativos” e inventam “inimigos internos”; usam as preocupações com a segurança como arma para consolidar a sua autoridade e a da elite ultraprivilegiada, oferecendo privilégios em troca de lealdades.
Esse processo está agora em aceleração, à medida que a divergência é cada vez mais reprimida por meio de detenções arbitrárias, deportações, ameaças de violência, e uma campanha incessante de desinformação e propaganda, conduzida com o apoio de barões dos média tradicionais e das redes sociais, alguns apenas complacentes, outros declaradamente entusiastas do tecnofascismo.
As democracias não são perfeitas: são vulneráveis à desinformação e não são ainda suficientemente inclusivas. No entanto, oferecem intrinsecamente um terreno fértil para o progresso intelectual e cultural, e por isso um potencial contínuo de melhoramento.
Nas sociedades democráticas, os direitos e liberdades humanas podem expandir-se, as artes florescem, as descobertas científicas prosperam e o conhecimento avança. Elas garantem a liberdade de questionar ideias e estruturas de poder, de propor novas teorias, mesmo que culturalmente desconfortáveis, algo essencial ao avanço da humanidade.
As instituições democráticas oferecem o melhor terreno para enfrentar as injustiças sociais e a melhor esperança de realizar as promessas do pós-guerra: o direito ao trabalho, à educação, à saúde, à segurança social, à participação na vida cultural e científica, e o direito coletivo dos povos ao desenvolvimento, à autodeterminação e à paz. Sem isso, a humanidade enfrentará estagnação, crescente desigualdade, injustiça e catástrofe, incluindo a ameaça existencial causada pela emergência climática, que a nova vaga fascista nega.
No nosso mundo hiperconectado, a democracia não pode existir no isolamento. Assim como as democracias nacionais exigem instituições fortes, a cooperação internacional depende da implementação efetiva de princípios democráticos e do multilateralismo para regular as relações entre nações, bem como de processos participativos com múltiplos intervenientes para garantir uma sociedade saudável.
O Estado de Direito tem que ir além das fronteiras, assegurando que tratados internacionais, convenções de direitos humanos e acordos de paz sejam respeitados. Apesar da governança global e das instituições internacionais existentes deverem ser aperfeiçoadas, a sua erosão em favor de um mundo governado pela força bruta, pela lógica transacional e pelo poder militar representa um retrocesso para uma era de colonialismo, sofrimento e destruição.
Tal como em 1925, nós cientistas, filósofos, escritores, artistas e cidadãos do mundo temos a responsabilidade de denunciar e resistir à ressurgência do fascismo em todas as suas formas. Assim, fazemos apelo a todas as pessoas que valorizam a democracia a agir:
- Defendamos as instituições democráticas, culturais e educacionais. Denunciemos os abusos contra os princípios democráticos e os direitos humanos. Recusemos o conformismo antecipado.
- Unamo-nos em ações coletivas, locais e internacionais. Boicotemos e façamos greve sempre que possível. Tornemos a resistência impossível de ignorar e dispendiosa de reprimir.
- Defendamos os fatos e as evidências. Cultivemos o pensamento crítico e criemos laços ativos nas nossas comunidades.
Esta é uma luta contínua. Que as nossas vozes, o nosso trabalho e os nossos princípios sejam uma barreira contra o autoritarismo. Que esta mensagem seja uma renovada declaração de resistência”.
Fonte: ICL Notícias