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Por Valter Mattos da Costa*
No ambiente da rede particular, o professor celetista não consegue cultivar sua vocação – sobrevive à lógica do lucro. Salários baixos e contratos instáveis têm precarizado a atuação desses educadores, que enfrentam jornadas exaustivas sem respaldo ou plano de carreira.
As salas superlotadas pressionam o trabalho docente. Com turmas inchadas, o tempo por aluno diminui, e o esforço individual se torna insustentável. Em paralelo, cresce a cobrança por resultados: metas numéricas impostas pela gestão e proprietários corroem o sentido pedagógico e forçam o profissional da educação a virar estrategista de desempenho.
Além da quantidade de alunos, soma-se a arrogância de pais e estudantes. Exigem atenção imediata, se indignam por notas baixas e cobram explicações. Em muitos casos, ignoram o cansaço acumulado do profissional – que é chamado, sem cerimônia, a oferecer reforço extracurricular e a produzir conteúdo para plataformas digitais, sem remuneração extra.
Os relatos de professores são contundentes: muitos acumulam tarefas didáticas, pedagógicas e tecnológicas, sem direito a pausas ou qualquer tipo de compensação. A rotina é exaustiva – e naturalizada como parte do ofício.
Essa realidade espelha relações de produção típicas do capitalismo: docentes tornam‑se proletários da educação privada, vendendo sua força de trabalho por salários que muitas vezes não superam R$ 2.285 mensais. Esse valor está 47 % abaixo da média da OCDE – calamidade nacional que penaliza professores em todas as redes (OECD, Education at a Glance 2023 – Brazil Country Note, 2023).
Relatos de professores apontam que a exploração exacerbada intensifica o adoecimento da categoria. Síndrome de burnout, depressão e ansiedade invadem a sala de aula e inviabilizam a permanência no magistério.
Aqui, no portal ICL Notícias, foi publicado recentemente matéria conectando capitalismo, burnout e falsa sensação de tempo livre (ICL Notícias, Sistema capitalista, burnout e a ilusão do tempo livre).No caso da rede privada de educação básica, este o fenômeno, como exemplo, intensifica-se: tempo de preparo, correção, reuniões e conteúdos online não contam como jornada, mesmo sendo exigido pela escola. É uma lógica de sobre-exploração que drena energia sem registro ou compensação.
O empregador, afinal, é uma empresa. A escola privada busca rentabilidade, trata a educação como produto e trata o professor como custo a ser minimizado. A instabilidade do contrato celetista, sem matrícula pública, reforça essa lógica: o trabalhador vive sob ameaça constante de demissão ou não-renovação.
Para poderem viver com o que ganham, muitos professores da rede privada são obrigados a trabalhar em várias escolas, distribuídos em três turnos: manhã, tarde e noite, numa escala 7 x 0. Fins de semana e feriados são destinados à correção de provas, preparação de aulas e atualização de plataformas. O que manda é a produtividade.
Para agravar a situação, cresce a prática de terceirizar a administração – e, em alguns casos, até o setor pedagógico – “antes comandada por docentes ou gestores escolares. Padrão que cria uma gestão mais burocrática, fria e distante, que empurra diretores e professores para uma condição funcional, como se ensinassem para uma corporação e não para uma comunidade escolar. Essa mudança fragiliza vínculos, desafia a autonomia docente e transforma o espaço escolar em mera máquina administrativa, voltada a metas em vez da educação.
Nesse cenário mercantil, a figura do educador se despersonaliza. Ensinar deixa de ser partilha intelectual para se tornar entrega de pacotes comerciais, alocados em metas. A pressão por resultados não significa qualidade, mas sim cumprimento de indicadores – que geram bônus a gestores, mas esgotam professores.
Diante dessa realidade, há alguma resistência: movimentos de docentes têm denunciado publicamente a precarização. Reivindicam melhores condições, remuneração digna e limite de jornada. Organizações profissionais apontam que não há educação de qualidade sem valorização real dos trabalhadores.
A crise alcança estudantes também. Professores esgotados transferem ao ensino, resultado e atenção deficitária (sem contar que, em geral, alunos neurodivergentes têm mais dificuldades de apoio do que na rede pública, que também não os atende adequadamente). Em circunstâncias extremas, a forma do capital prevalece sobre o conteúdo pedagógico – e isso compromete a formação integral.
A lógica do lucro, entretanto, impõe silêncio. Escolas cobram produtividade: relatórios, atividades online, correções rápidas, reuniões contínuas etc., etc. etc. Sem contrapartida. O docente fica refém de sua própria dedicação, sem respaldo legal ou institucional.
A superlotação não é circunstancial, mas método. A rede privada opta por mais alunos por turma, reduz custos e aumenta receita. A consequência é abandono – já que alguns docentes jogam a toalha ou migram para a rede pública com estabilidade (na verdade, não poucos acumulam duas matrículas públicas e
mais um tanto de escolas particulares).
Como resistir a essa produtividade alucinante e infinita? Como disse, a mobilização coletiva tem tentado ser uma saída. Sindicatos denunciando condições, manifestações, pautas de reivindicação trabalhista, apoio mútuo entre profissionais de ensino oferecem saída e denúncias nas redes sociais. Mas esses esforços esbarram em pressões corporativas e falta de apoio legal.
Se a educação é processo social, essa lógica mercantil fere sua essência. Centro-Oeste, Nordeste, Norte, Sudeste e Sul – por onde se olhe, vemos a exploração dos docentes privados: celetistas e desprotegidos. Mais uma vez, a saída pode passar por redes, movimentos e reformas: contratos estáveis, piso digno, limitação de lotação, regulação de aplicativos e plataformas. O lucro não pode eclipsar a formação.
É urgente questionar: qual escola queremos, sendo ela pública ou privada? Uma fábrica de métricas frias ou um espaço de construção coletiva? Até lá, permanecerá o professor da rede particular preso à exploração capitalista, celetista e mal pago – Ah! e exausto.
*Professor de História, especialista em História Moderna e Contemporânea e mestre em História social, todos pela UFF, doutor em História Econômica pela USP e editor da Dissemelhanças Editora.
Fonte: ICL Notícias